"O outro não é uma ameaça, é uma possibilidade." Eduardo Galeano

sábado, 16 de abril de 2011

Ideologias da Escravidão

Vinicius Alves do Amaral

No final da década de 1980, o historiador Ciro Flamarion Cardoso organizou um pequeno livro (A Escravidão e a Abolição no Brasil: Novas Perspectivas) sobre a escravidão negra no Brasil. Pequeno no número de folhas, mas rico em reflexões, principalmente historiográficas. Nós trataremos aqui de um de seus artigos: Escravidão, Ideologias e Sociedade de Ronaldo Vainfas.

Ronaldo Vainfas
Ronaldo Vainfas é um dos historiadores mais renomados quando se trata do Brasil Colonial. Seus estudos vão geralmente na linha da História das Mentalidades como Trópico dos Pecados e a Heresia dos Índios. Vainfas defende que compreender o mundo colonial passa pela religião, seja a praticada nas Igrejas ou as praticadas nas ruas e aldeias.
Flamarion Cardoso o criticou, no final da década de 1970, por excluir de suas análises históricas o peso da economia e da política, assim como ele atacava Ciro por estar muito ligado a um marxismo esquemático. Com o tempo, porém, ambos descartaram suas posições radicais e se tornaram grandes interlocutores, reconhecendo que em seus ataques iniciais nem tudo era verdade. Na introdução desse livro, Vainfas é elogiado pelo colega justamente por não considerar as mentalidades como uma espécie de estrutura mental toda-poderosa guiando os homens, como se só ela bastasse para entender a história, mas justamente por utilizá-la como espécie de complemento da vida econômica, política e social (na realidade, ele se apóia em uma interpretação da economia colonial e imperial construída por João Fragoso da qual falaremos em outra ocasião).

Cartaz norte-americano sobre fuga de escravos.
No artigo em questão, Vainfas inicia comparando os argumentos dos pensadores no Sul dos Estados Unidos com o dos brasileiros. Para ambos, a defesa da escravidão ia muito mais além da defesa da propriedade: era uma questão de sobrevivência de toda uma civilização! Acreditavam que a partir do momento em que os escravos fossem livres, toda hierarquia seria quebrada e seus costumes bárbaros influenciariam os brancos.
O maior exemplo dessa proximidade entre Brasil e EUA quando se trata de pensar a escravidão está no pensamento de dois patriarcas da independência destes dois países: Thomas Jefferson evitava tocar no tema, enquanto José Bonifácio defendia uma abolição lenta e gradual para evitar essa "anarquia". Ambos reconheciam essa instituição como um mal necessário tamanha a sua importância. Há outra semelhança entre eles: são liberais. Mesmo sendo liberais, ambos estão a meio caminho, como fala Vainfas, do abolicionismo e da legitimação escravista. Essa posição, nos mostrará o autor, será a semente do fim da escravidão.

Thomas Jefferson
José Bonifácio Silva Andrada
Como era a pensada a escravidão antes dos liberais? Ora, os maiores defensores da instituição no mundo colonial eram os membros da Companhia de Jesus. Criticam a escravidão indígena por barrar seu projeto missionário, mas toleram a escravidão africana. O que está em jogo não é a instituição, pois, para eles, ela era natural: há os que nascem para servir. Esse argumento, retirado de Aristóteles, podia ter como companheiro o argumento, mais ligado á tradição cristã, de que o homem negro é o descendente de Cam, aquele cuja prole foi marcada (acreditavam os teólogos que com a cor negra) e condenada a pagar pelo seu pecado.
O maior representante desses apologistas da escravidão africana era um dos maiores nomes da literatura portuguesa, padre Antônio Vieira. Seus sermões não só encorajaram os colonos e portugueses a lutarem contra os holandeses durante a Insurreição Pernambucana, mas também tentaram convencer os próprios escravos de que sua condição era justa. A escravidão era mera ilusão diante da fé, dizia ele, o que vale é a recompensa depois da morte: uma vida no Paraíso. Padre Vieira, criativo em fabricar metáforas, até compara o engenho ao cativeiro da Babilônia onde os judeus sofreram, mas, no final das contas, ganharam a liberdade. O engenho era o Inferno que tinham de passar antes de desfrutarem do Céu.

Padre Antônio Vieira
Outro grande defensor da escravidão no mundo colonial também era jesuíta: Jorge Benci. Esse padre italiano, tornou-se conhecido com seu livro Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos (1700), um verdadeiro manual de como se deveria tratar os escravos. Repete a velha fórmula de escravidão como castigo pelo pecado de Cam, mas enumera, diferente de Vieira, métodos para controlar o escravo: moderar nos castigos, instruí-los na religião católica, tentar ser um exemplo para seus escravos.

Tanto o grande orador português como o jovem e obscuro padre italiano concordam, em muitos momentos, que os senhores estão longe de serem os donos da razão. Na maior parte das vezes são violentos e imorais, não ajudando, assim, na sua missão de civilizar os escravos. Essas críticas não significam uma oposição, mas apenas uma desavença menor. Ora, os jesuítas faziam parte da empresa colonial (como vimos antes, através do Padroado). Além disso, eles estavam empenhados na Contra-Reforma, no movimento de maior rigidez religiosa da Igreja Católica provocada pela Reforma Protestante, por isso a religiosidade negra, a miscigenação e o comportamento dos senhores era importante para ser constantemente vigiado.
Se senhores e jesuítas estavam no mesmo barco, isso não significa que eles pensavam da mesma forma: enquanto os jesuítas queriam uma escravidão patriarcal e cristã, os senhores continuavam com práticas como exagerar nas punições, deixar o domingos e feriados santos para que o escravo trabalhasse para ganhar um dinheiro a mais e manter padres longe deles, por exemplo. Os senhores não queriam o projeto de escravidão dos jesuítas, achavam que era mais uma intromissão sem motivo.

José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho
Eles deixam de serem incomodados quando a ordem é expulsa da colônia em 1760. O período Pombalino é conhecido por ser o começo da entrada dos ideais iluministas em Portugal e Brasil, mas tabém podemos ver "iluministas" defendendo a escravidão, como é o caso de José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho (que, aliás, também era Bispo de Olinda). Voltamos, então, para a posição meio indecisa de Bonifácio e Jefferson. Essa posição é indecisa, pois os ideais liberais provocam um dilema: qual o direito mais importante, o da propriedade (do qual desfruta o senhor sobre seu escravo) ou o da liberdade (o qual deveria ser desfrutado pelo escravo)? Esse dilema, com o tempo, apenas se fortalece. No campo das políticas, a escravidão é prolongada, mas no campo das idéias, segundo Vainfas, ela está completamente arruinada na metade do século XIX. É tempo de abolicionismo em toda América, estão chegando os imigrantes e o liberalismo se consolida cada vez mais. A escravidão se esgota primeiro nas idéias e depois na realidade.

Na minha visão, esse é um texto que nos fornece uma interpretação muito geral sobre o assunto. Isso bom por um lado, torna compreensivo as mudanças históricas, por outro é ruim uma vez que não se aprofunda muito no assunto. O que provoca isso não é o pouco domínio do autor sobre o tema (muito pelo contrário, Vainfas domina como poucos a História do Brasil Colonial), mas o curto espaço que seu texto dispunha.
Assim, Vainfas tenta nos apresentar essa mentalidade escravista através de dois grandes nomes do mundo colonial: Vieira e Benci. Ainda tenta demonstrar a diversidade de formas que essa mentalidade assumia - a defendida por estes homens, por exemplo, era parte de uma visão religiosa. A diversidade era tanta que surgia desavenças entre senhores e inacianos. Essa mentalidade se adapta aos novos tempos inaugurados pelo liberalismo, mas não se adapta muito bem já que ele possui um "gene" quase que totalmente contrário á essa instituição. O que a suportou por tanto tempo seria uma leitura meio manca dessa ideologia nova (um liberalismo escravista) ou a simples omissão da escravidão dentro dos seus pensadores. Mas, a economia e a sociedade mudou tanto que ficou impossível  protegê-la por mais tempo.
O que se pode inferir é que, em se tratando da escravidão negra, a Igreja Católica, através dos jesuítas, foi a sua maior base, ela que fornecia os pretextos para legitimar essa instituição recriada pelo mercantilismo. Com o liberalismo temos um outro momento, onde a escravidão não tem vez, mas, por conta dos fortes vínculos do Brasil com essa instituição, foi protegida o máximo que pode. A consolidação do capitalismo, é o que se desprende do texto, mudou a mentalidade. Agora parece surgir a ideologia do trabalhador assalariado, algo que justifique sua existência como justificou a do escravo.

Referências:
VAINFAS, Ronaldo. Escravidão, Ideologias e Sociedade. In: CARDOSO, Ciro Flamarion (Org.). Escravidão e Abolição no Brasil: Novas Perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

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