"O outro não é uma ameaça, é uma possibilidade." Eduardo Galeano

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Entre a cruz e a espada

"Apesar dessas vozes discordantes, em geral o parecer dos historiadores é severo quando se trata de analisar a atuação da Igreja nos países coloniais. Ao meu ver, no que diz respeito ao Brasil, a crítica á atuação dos missionários não pode ser feita de maneira genérica. Cada ordem religiosa teve uma história específica na América Portuguesa. E dentro de cada ordem, houve de tudo, nos vários momentos históricos, d ehomens venais até santos como parecem ter sido os veneráveis Anchieta e Malagrida".
(LEONARDI, Victor. Entre Árvores e Esquecimento: História Social no Sertão do Brasil. Brasília: Editora Paralelo 15, 1996. p. 230.)

Leonardi está falando sobre uma tendência em nossa historiografia em reconhecer nos missionários e na sua atuação um fato igualável ao dos bandeirantes - a destruição da cultura indígena. Colocando os religiosos assim em pé de igualdade com esses homens, estariam os historiadores esquecendo de reconhecer a especificidade desses dois personagens.

O bandeirante Domingos Jorge Velho e seu filho, Henrique Bernadelli.

O bandeirante ou quem participasse das tropas de resgate eram homens interessados em enriquecer somente. Geralmente militares ou então simples colonos armados, esses homens partiam para o sertão destruindo aldeias e escravizando seus moradores, para serem comprados nas vilas coloniais mais importantes da região. Os bandeirantes são os personagens mais conhecidos, sendo, por um tempo, motivo de orgulho cívico do Estado de São Paulo (por desbravarem os sertões). Hoje sabemos que os bandeirantes, na maioria das vezes, eram muito pobres e contavam na sua tropa com índios, inclusive, que ajudavam a rastrear outras tribos.
José de Anchieta celebra a primeira missa de São Paulo de Piratininga, Henrique Bernadelli.
Os mesmos bandeirantes vindos da vila de São Paulo de Piratininga (fundada aliás pelos jesuítas) encontravam nos membros da Companhia de Jesus os seus maiores inimigos. Os padres defendiam a catequese do nativo, a sua incorporação pacífica ao mundo colonial e cristão e não sua escravização. A luta dos jesuítas contra os bandeirantes gerou inclusive sua expulsão da vila.
Aliás, nem todos os jesuítas e membros de ordens religiosas que atuaram no Brasil concordavam na luta contra a escravização. Há casos, por exemplo, no Maranhão, onde grandes senhores de escravos indígenas eram justamente jesuítas.
O historiador Stuart Schwartz nos diz que o projeto dos jesuítas, principalmente no Norte e Nordeste, era evangelizar, "civilizar" os povos locais e assim transformá-los em trabalhadores assalariados, em camponeses que podiam vender sua força de trabalho aos senhores de engenho ou qualquer outro tipo de latifundiário, mas preservando sua liberdade. Onde os jesuítas atuaram, conseguiram atingir esse objetivo? Schwarz diz que pelo menos na Bahia não, os índios"catequizados" muitas vezes eram escravizados pelos colonos. Luís Felipe de Alencastro acrescenta mais dois objetivos: impedir a fuga de escravos africanos das fazendas e dos engenhos e fazer com que esses "índios mansos" os protegessem dos "índios bravos".
Aldeia de Tapuios, Rugendas, séc. XVIII.

Mas e na Amazônia? O que aconteceu? A conquista da Amazônia, segundo Eduardo Hoornaet, foi feita por três personagens: o soldado, o comerciante e o padre. Essa afirmativa demonstra como as ordens religiosas tiveram um poder muito grande na colonização do "sertão amazônico". Num primeiro momento, a conquista se deu por vias militares, mas mesmo nestas expedições (como a de Francisco Caldeira Castelo Branco e Pedro Teixeira) pode-se perceber na fala de seus comandantes o desejo de catequisar o povo local, como nos aponta o historiador Auxiliomar Ugarte. Num segundo momento, as ordens religiosas penetram no solo amazônico, inicialmente pelo lado espanhol, e se envolvem nas disputas territoriais entre Portugal e Espanha. A proposta era a mesma dos jesuítas analisados por Schwartz: salvar almas e ensinar o índio a ser um lavrador livre.

Índios escravizados, Rugendas, séc. XVIII.
Na prática, contudo, os índios se tornaram escravos. A colônia do Grão-Pará e Maranhão não conseguia obter os escravos africanos, estes eram mandados em peso para a colônia do Brasil. A saída era a mão-de-obra indígena, pelo menos até a chegada dos imigrantes nordestinos na região nos anos finais do Império.
Haviam duas maneiras de se obterem trabalhadores indígenas: através da guerra justa (a guerra feita em nome da defesa dos povoados locais contra índios "belicosos"), das tropas de resgate (sobre o pretexto de resgatar nações amigas aprisionadas pelos índios "mais selvagens", elas invadiam várias aldeias) e nos descimentos. Os descimentos se concentravam na calha central da bacia Amazônica. Num primeiro momento eram dedicados aos habitantes dessa região, mas estes foram sumindo - ou por conta de fugas ou pelas mortes por doenças contagiosas. Depois, os missionários passaram a buscar os povos mais distantes e a convencê-los a descerem para estes aldeamentos.
Neste aldeamento, estavam outras nações reunidas sob as ocas, trabalhando em roças e aprendendo a religião católica e o português nas capelas construídas lá. Interessante, como nos conta Almir Diniz Carvalho Júnior, é o fato de cada nação contar com seu líder, o Principal, legalmente um súdito do rei. Outro ponto interessante é que nem sempre as nações se davam bem: há casos de lutas sangrentas e até de dominação de uma sobre a outra dentro dos descimentos.

Fundação de Belém do Pará, Theodoro Braga, 1908.
Estes descimentos forneciam mão-de-obra "amansada", diferente dos índios inimigos capturados pelas tropas de resgate no interior da floresta, por isso eram tão almejados. No entanto, o índio do aldeamento deveria trabalhar na cidade por um certo período de tempo, depois voltaria para sua aldeia. Existiam grupos de trabalhadores que se alternavam a cada mês, sendo assim os demais trabalhadores poderiam descansar por um mês antes de voltar ao trabalho. Há reclamações dos missionários de que os colonos tentem escravizá-los nas cidade, assim como há reclamações dos colonos de que os missionários monopolizassem a única força de trabalho na região.

Mas, estávamos falando de aculturação. Esse tipo de moradia, o aldeamento, unia diferentes nações sob o mesmo teto como vimos, criando assim uma espécie de miscigenação indígena. Antônio Porro chama esse índio aldeado, fusão de várias nações indígenas, de extrato neo-indígena. Além disso, o objetivo do missionário era evangelizar, catequisar o "gentio", impor sua religião á ele. Claro que nem todos admitiram isso, muitos se revoltaram, fugiram ou mesmo acabaram incorporando elementos de sua cultura á essa cultura estrangeira.
Padre Gabriel Malagrida.
Mas, como fala Victor Leonardi, não devemos acreditar que essa espécie de dominação simbólica seja igual ao genocídio praticado pelos bandeirantes e demais apressadores de índios. Sim, existiram missionários que desonraram seu ofício, mas também existiriam, como ele lembra, homens que lutaram para protegê-los como o jesuíta italiano Gabriel Malagrida, que por sua atuação á favor dos índios e suas críticas á Pombal foi morto pela Inquisição.
Sim, os missionários tinham parte do projeto colonial, eles eram parte dele (Tanto Portugal quanto Espanha partilhavam o sistema do Padroado, no qual a Igreja Católica obedecia aos interesses do rei). Eles estavam marcados também pelo seu tempo. No seu tempo ainda existia aquele preconceito sobre as demais culturas não-européias e aquele cristianismo militante, filho das Cruzadas que ajudou a fundar Portugal e Espanha através da Reconquista. Sim, eles tiveram culpa nesse processo de desestruturação da sociedade e da cultura indígena, mas não chegaram perto da crueldade e violência praticada pelos mais gananciosos colonos que faziam aprte das bandeiras e tropas de resgate.

Referências:
ALENCASTRO, Luís Felipe. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. Líderes Indígenas Cristãos no Mundo Cristão Colonial. Canoa do Tempo: Revista de Pós-Graduação da UFAM. N. 1, vol. 1. jan/dez. Manaus: EDUA, 2007.
LEONARDI, Victor. Entre Árvores e Esquecimento: História Social no Sertão do Brasil. Brasília: Editora Paralelo 15, 1996.
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
UGARTE, Auxiliomar Silva. Alvores da Conquista Espiritual do Alto Amazonas (Séculos XVI-XVIII). In: SAMPAIO, Patrícia Melo; ERTHAL, Regina Carvalho (Org.) Rastros da Memória: Histórias e Trajetórias das Populações Indígenas na Amazônia. Manaus: EDUA, 2006.

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