"O outro não é uma ameaça, é uma possibilidade." Eduardo Galeano

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O Símio de Deus

ESTENSSORO, Juan Carlos. O Símio de Deus. In: A Outra Margem do Ocidente. Adauto Novaes (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1999.


O Símio de Deus
por Vinicius Alves do Amaral

Juan Carlos Estenssoro é um historiador peruano que tem como objeto de estudo a história colonial de seu país. Tornou-se conhecido em seu país por algumas teses polêmicas sobre o trabalho missionário e a resistência indígena, como veremos a seguir.
O autor inicia seu texto falando da noção que os relatos eclesiásticos dos séculos XVI e XVII podem nos dar sobre o trabalho missionário. Esses textos falam da resistência dos povos andinos á aceitar a fé católica. Alguns historiadores vão mais longe e interpretam a questão como se fosse uma guerra, onde os oponentes são a fé do colonizador e do colonizado. Para Estenssoro essa é uma visão que se auto-proclama politicamente correta, mas na verdade é altamente etnocentrista.
Em primeiro lugar, estes pesquisadores entendem o indígena como uma categoria uniforme e cuja cultura só pode ser preservada com o isolamento, daí estes mesmos pesquisadores classificarem os indígenas que vivem em centros urbanos ou que adotaram a tecnologia como verdadeiros traidores. Em segundo lugar, ao pensarem dessa forma eles estão renovando um discurso etnocêntrico que foi o centro do projeto colonial que tanto criticam.

Os massacres dos colonizador espanhóis para com os indígenas ficou conhecido como a "Leyenda Negra".
O termo índio nasceu de um erro - Colombo assim os nomeou pensando ter chegado ás Índias. O termo simplesmente coloca povos tão diversos (como os Cambebas ou os Ashaninca, como vimos aqui) num mesmo patamar, como se sua cultura fosse uma só e sabemos que não é. A sociedade colonial tornou esse termo uma categoria jurídica para assegurar esse sentido: índio é um súdito que não pode exercer cargos administrativos e deve pagar tributos e jornadas de trabalho compulsório como a mita.
O propósito da colonização é essa: estabelecer a oposição para justificar a exploração. Essa oposição não pode nunca ser diluída, senão a colonização perde seu discurso fundador. A Igreja foi um dos braços da colonização, apesar de ter seus interesses próprios. Assim, para Estenssoro devemos enxerga a Igreja não como uma instituição atemporal, mas lembrar que ela também é filha de seu contexto. No contexto em questão, ao lado de sua missão de ensinar a fé católica também havia o objetivo de criar "fronteiras étnicas". Podemos enxergar essa manutenção da oposição através desses relatos: a Igreja não admite que os indígenas estão se tornando cristãos, pois uma vez isso constatado acabaria com toda o propósito colonial e com seu trabalho missionário.
A realidade colonial aqui não deve ser entendida simplesmente como um mundo de oposição, pelo contrário; esse é apenas o discurso colonial, a realidade é muito mais complexa. Diante de uma nova cultura, como acontecia na colonização, há dois sentimentos possíveis: a aproximação e a rejeição. A aproximação pode ser motivada tanto pela curiosidade como pela verdadeira empatia. A rejeição, contudo, repousa no sentimento de superioridade, de etnocentrismo. O historiador chama a atenção para o fato de não existir uma fronteira clara entre estes dois sentimentos. Um bom exemplo disso são os missionários que tentam entrar no mundo do indígena não somente para entendê-lo, mas para transformá-lo naquilo que julgavam ser uma cultura superior: a sua própria.

Missionário evangelizando indígenas: assimilação e rejeição juntos.
Assim, quando estes mesmos evangelizadores encontram elementos da cultura indígena que se aproximam de sua cultura (como palavras que correspondam á criador, anjo e salvação, dentre outras) imaginam que já houve uma evangelização anterior na América, talvez pelos apóstolos (nasce aí o mito de que São Tomás ou São Tomé no Brasil tenha passado pelo continente antes dos colonizadores). No entanto, essa mesma idéia pode abalar a noção de que estes homens são radicalmente diferentes dos europeus e de que existe uma única Igreja. Outro mito vai sendo construído: o de que esses elementos podem ser obra também de um imitador de Deus, o Diabo. Esse ardiloso símio de Deus, contudo, não faz uma cópia perfeita da "verdadeira religião", o que explica a idolatria dos indígenas.
Os missionários passam a estudar os indígenas e ao mesmo tempo tentam introduzir na sua cultura elementos novos. Como os muitos povos indígenas peruanos não tinham uma noção de divindade transcedente (fora do mundo material), os evangelizadores precisaram adaptar o Deus cristão á essa realidade. No lugar dos antigos ídolos, é colocado a imagem de Deus, sendo que a idolatria é um conceito proibido pela Igreja.
Existiam, contudo, elementos que os missionários precisaram construir ao invés de substituirem como foi feito com os ídolos. A comunhão e a confissão é um destes elementos. Para o historiador a aceitação de uma religião só acontece realmente quando uma necessidade simbólica é substituída ou então criada. Os evangelizadores coloniais precisam criar a necessidade de se confessar e de comungar. Ora, tanto uma quanto a outra só possuem seu propósito diante do pecado. A noção pecado precisava adquirir um sentido ativo na vida dos gentios, nada mais lógico então que materializá-lo.
Assim, o pecado é transformado pelos missionários em animais nocivos que surgem no interior das pessoas toda vez que elas cometem algum ato em desagravo á Deus. A confissão permitiria á esses indígenas a possibilidade de vomitar esses sapos e insetos do pecado. Criou-se então um sentimento de culpa que chegou á evoluir em algumas regiões para um mal-estar profundo diante do pecado. A necessidade de se confessar era urgente e nos primeiros anos da colonização do Peru existiam poucos religiosos distribuídos proporcionalmente na região. Uma solução foi ordernar entre seus pares um confessor ou então contabilizar seus pecados para quando encontrar um padre real entregar á ele a lista e pedir que expulse enfim os animais do pecado. Estes povos possuíam escrita, ao contrário das sociedade ágrafas do Brasil, mas uma escrita muito diferente: registravam nessas pequenas tiras de pano conhecidas como quipos os acontecimentos em suas comunidades através de diferentes nós nos tecidos. Com o trabalho evangelizador, elas passaram a se transformar em documentos preciosos para a Igreja enumerar seus convertidos.

Um ancião segurando um quipo: escrita através de nós.
Como podemos ver, os missionários reinterpretaram a cultura indígena, procuraram assimilar nela seus valores, e isso produziu uma religiosidade singular. Importante que se diga que a Igreja passava pelo momento da Contra-Reforma na Europa, ou seja, procurava fortalecer sua liturgia e doutrina para se firmar como única representante de Deus na terra. Com certeza, estes trabalhos missionários fizeram essa pequena releitura cultural porque o Peru ainda não havia sido profundamente colonizado (os espanhóis chegam em 1532, mas a colonização efetiva começa com a chegada do vice-rei Francisco de Toledo  na década de 1560) e ainda não havia sido criada uma diretriz para a evangelização na religião. Haviam inúmeras ordens religiosas (como os mercedários, agostinianos, franscicanos, etc) que atuavam cada uma á sua maneira no processo de evangelização. A situação muda com a chegada da Companhia de Jesus, principal instrumento da Contra-Reforma, á partir das décadas de 1560 e 1580.
O objetivo dos jesuítas é instituir uma "religião pura", tal qual era praticada na Europa, e enxergavam na idolatria de Deus, nos sapos do pecado, na ordenação de sacerdotes indígenas por eles mesmos e nos quipos para as confissões mais uma vez o dedo do Diabo. Estenssoro não é capaz de dizer se estes religiosos não percebiam que todas essas ações foram motivadas pelo trabalho missionário anterior e não pelo símio de Deus (algumas como o batizado antes da comunhão com certeza foram condenadas tendo em vista criticar o trabalho das ordens anteriores).

Símbolo da Companhia de Jesus: iniciais do nome em grego de Jesus (Ihesus).
Agora é preciso eliminar qualquer traço nativo na religião católica, desde os ídolos até comidas locais utilizadas na missa. Os quipos são queimados e alguns sacerdotes tentam convencer os indígenas de que não existem animais do pecado. Antes elementos que indicavam o sucesso da assimilação são encarados agora como efeito colateral, o que indica que a oposição não pode ser quebrada. Ter que admitir que os indígenas se tornaram cristãos é aproximá-los da condição dos colonos e isso seria deplorável para o projeto mercantilista. A Igreja Católica redefine a fé e a fronteira étnica constantemente para assegurar a diferença.
Nas conclusões finais, Estenssoro lembra o papel que estes missionários têm para nós, pesquisadores das Ciências Sociais: estes religiosos que visitaram o Novo Mundo são considerados como os pais da etnografia, uma vez que eles são os primeiros a tentar compreender o mundo do Outro. No entanto, eles ainda estão eivados de etnocentrismo. Eles querem compreender o mundo do Outro, mas para mudá-lo completamente. E o texto se encerra como uma questão deliciosamente irônica: "Se as semelhanças sempre foram obra do maligno, o que dizer dessa recorrente, insuperável, eterna separação e diferença: armadilhas do etnógrafo ou de um símio fabulador?"

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