"O outro não é uma ameaça, é uma possibilidade." Eduardo Galeano

sexta-feira, 6 de maio de 2011

História Kampa, memória Ashaninca

RENARD-CASEVITZ, France-Marie. História Kampa, Memória Ashaninca. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/ Secretaria Municipal de Cultura/ Fapesp, 1992.

História Kampa, Memória Ashaninca
 por Francisca Anália Ferreira da Silva.
“Nenhuma palavra se risca na tinta antes de ter conhecido o sangue. (León-Paul Fargue). É a empresa que conta. É o resultado que interessa. O que resta para nossa história e sua memória é a transformação irremediável de um mundo sugado em suas seivas e seus homens”(Renard-Casevitz, 1992, p. 197).

Para a autora, a história dos kampas precisava ser contada através do olhar de seus verdadeiros protagonistas. A visão de seus carrascos era sempre envolvida de uma falsa superioridade que também era usada como desculpa para cometer suas atrocidades contra este povo e os demais povos indígenas. Eles foram usados como mão-de-obra, no enriquecimento de homens gananciosos durante o mini-boom da salsaparrilha, nas minas de ouro e no garimpo de Madre de Diós. Mesmo com a divisão de terras entre Peru, Bolívia e Brasil os Kampas permaneceram pertecendo ao tronco lingüístico Arawak.
Membros do povo Ashaninca.
Segundo o arqueólogo Lathrap, a primeira migração dos proto-Arawak que se deu da costa do Pacifico para o médio Amazonas resultou na origem da mandioca doce (yuca). Através do descobrimento de cerâmicas de aproximadamente 2200 a.C pode se supor que esse povo vivia basicamente da pesca e da horticultura, agrupados entre cem e trezentas pessoas. Já a segunda migração chamada de proto-Maipure por Lathrap, aparenta ter em seus agrupamentos entre quinhentas a mil pessoas, dados estes supostos pelos arqueólogos com base no fato de já possuírem fiação, tecelagem e números difusos de cerâmicas.
Na região do Aycucho, surgem os Huarís que tiveram suas divergências com os povos andinos dentre eles os incas. Os povos do altiplano eram considerados civilizados e os "de baixo", da floresta, selvagens (chuncho), porém havia relações religiosas e simbólicas entre esses povos. Acreditasse que tecidos, plantas e madeira bruta e trabalhada subiam a serra, enquanto o metal como machado e jóias desciam para a floresta. Os grupos Arawak subandinos tinham como vizinhos os huarís e os incas, sendo chamados pelos incas de Anti (nome pejorativo, próximo de nossa definição de "bárbaro"), mas mesmo assim eles possuiam uma relação de troca e aliança política. Os incas apostavam em uma relação de clientelismo com um povo que poderia se tornar seu vassalo. O conjunto Arawak aliava-se aos vizinhos, como os Pano, para obter permissão para utilizar suas cidades, com a finalidade de fortalecer o comércio, as relações militares e a interação interétnica. Mesmo assim surgiam conflitos, principalmente com o Império Inca.
Com a chegada dos espanhóis, que passaram administrar esses povos como mão-de-obra em suas minas e plantações, (com um olhar de superioridade, de "civilizado" observando um povo “selvagem” que só servia para trabalhar) as relações comerciais entre estes povos tiveram que ser feitas muitas vezes clandestinamente. Até 1900 os franciscanos, no Peru, foram o grupo religioso com mais informação sobre os povos Arawak. As epidemias mataram muitos índios, o que desencadeou um sentimento de revolta e, consequentemente, uma guerra com a união dos Kampas, Piro e Pano do Ucayali. Estes povos confederados vieram a matar ou expulsar os brancos responsáveis pelas mortes. A política franciscana em relação aos índios se resumiu então a “dobrar a vontade, mesmo que seja a paulada, afim de que mais tarde se ilustre, se abra o entendimento para a civilização.”
Em 1851 cresceu a demanda da salsaparrilha (usada como antitérmico e remédio contra a sífilis) e com isso houve o aumento da devastação tanto da floresta como do índio. Essa situação culminou na decisão do prefeito Loreto, em 1860, de proibir a exploração, porém o decreto não foi atendido e muito menos cumprido. As terras altas e a Amazônia envolviam três conjuntos regionais: os Andinos, Arawak e os Pano. O ramo ocidental da grande família lingüística Arawak se divide em cinco: os Yanesha (Amuesha ou Amages); ao Ashaninca (ou Kampa) do Gran Pajonal; os Nomatsiguenga; os Matsiguenga; e os Piro. O texto se concentra mais nos Arawak e no subgrupo Ashaninca.
Dois jovens Ashaninca e sua mãe.
Estes viviam em grandes espaços, divididos em pequenas residências, construídas para que todos os seguidores de um chefe importante ficassem juntos ou pelo menos interligados. Cada unidade tinha sua autonomia, sendo possível realizar casamentos até com estrangeiros. A sociedade Kampa é um organismo multicentrado cuja coesão se funda na multiplicação das relações horizontais, igualitárias e reticulares estabelecidas por cada unidade local independente.
O que diferencia os Kampas dos demais povos indígenas é uma espécie de acordo, onde é proibida a guerra interna. Os Kampas são pacíficos e os Piro amam a liberdade, além de serem excelentes guerreiros. Em 1880 os Kampa são obrigados a deixar o Chanchamayo, um lugar rico em minas de ferro,  e em 1896 começa a luta pelo sal (em defesa do Cerro de La Sal) contra os colono ingleses. Os Kampa ainda foram utilizados pelo ganancioso aventureiro Fitzcarraldo que descobriu o varadero pretendia usar para construir uma ferrovia, mas morreu sem concluir seus planos.
Os Kampas tentam se reerguer, se lembram das histórias contadas por seus parentes cheia de sofrimento e dor contam relatos de que Fitzcarraldo queimava índios à noite para iluminar as refeições noturnas de seus homens. Muitos preferiram resolver a situação em que se encontravam se matando: as mulheres, por exemplo, davam a luz e em seguida esmagavam os crânios das crianças nas vigas para que não fossem escravizados também. Perderam sua liberdade, suas terras, mas mantiveram seu espírito guerreiro e não desistiram de lutar.
O que a autora quer demonstrar com isso é que esse povo, ao contrário de muitos outros, soube manter sua autonomia, mesmo sendo considerado inferior tanto pelos incas como pelos conquistadores espanhóis. A cultura dos Kampa, singular por preservar a autonomia de cada aldeia e por cultivar a paz, só foi burtalmente abalada séculos depois da colonização, com os aventureiros, mineiros, caucheiros e seringueiros trazidos para a Amazônia pelo capitalismo monopolista. Este povo se viu em uma situação catastrófica: fome, movimentos messiânicos e massacres internos. As aldeias Kampa passaram a ser atacadas não só por homens brancos, mas pelos seus próprios membros, armados e dominados pela ganância, quebrando assim o milenar acordo de paz que esse povo tinha entre suas aldeias.
A autora tenta escrever uma história não-oficial dos Kampa, para isso se utiliza da arqueologia e, ao final do texto, das memórias de seus membros que vivenciaram aquele período sombrio de sua história. A memória, no momento em que o artigo estava sendo escrito, era o único instrumento de que essa sociedade dispunha para reconstruir sua história e sua cultura depois de tantas desgraças. Hoje, os Ashaninca tentam resgatar seus valores e, ao mesmo tempo, dialogar com o mundo moderno. Embora muitos ainda não acreditem num diálogo com esse mundo moderno que tanto lhes prejudicou, outros, no entanto, ainda possuem fé e esperança numa convivência pacífica. Segundo a autora, o primeiro passo para atingir essa convivência seria reconhecer o passado sangrento que a colonização e a construção nacional ergueu e com isso tentar não repetir os mesmos atos de um Fitzcarraldo, por exemplo.

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